23 de mar. de 2012

Pessoas mais velhas sofrem mais os efeitos do crack no cérebro

Jornal O Estado de Minas

Efeito da droga é ainda mais devastador nos cérebros das pessoas maduras. Dependência é mais rápida e contribui para acelerar o quadro de deteriorização da saúde do usuário

Sandra Kiefer
Nas mentes mais maduras, nem sempre a viagem do crack tem volta. Os primeiros sinais do envelhecimento dos usuários da droga servem como alerta para as autoridades, devido à rápida dependência provocada por ela e ao alto grau de demência em função da destruição irreversível dos neurônios. Em outras palavras, o uso do crack “frita o cérebro”, no jargão dos viciados na pedra. “O prognóstico das pessoas com mais idade piora muito, porque elas já tendem a uma perda de neurônios com o processo natural do envelhecimento. Nesses casos, o efeito do crack é mais deletério”, compara o psiquiatra e homeopata Aloísio Andrade, presidente do Conselho Estadual sobre Drogas.
“O enfrentamento do crack na terceira idade é uma questão de saúde pública”, defende a gerontóloga Viviane Café Marçal. Ela lembra que se uma pessoa com mais de 50, 60 anos cair e fraturar um braço durante o desequilíbrio da paranoia do crack, isso terá consequências mais graves do que na infância, em que na maior parte das vezes basta enfaixar o braço. “Bem, os gastos somam R$ 8 mil em média para sete dias de internação de um idoso que sofreu uma queda leve”, compara. O aumento do uso do crack por pessoas mais velhas poderá obrigar à criação de uma comunidade terapêutica voltada para a permanência de idosos que queiram se livrar da dependência química em drogas. “É um recurso caro, que pressupõe outro tipo de profissional de saúde, corrimão, piso diferente e a presença de um geriatra capaz de fazer a combinação de medicamentos”, compara.
Diferentemente da maconha, usada nos anos 1970 para ampliar a consciência e aumentar a percepção, o crack atua no sentido oposto. Sua mistura serve para entorpecer os sentidos, anestesiar. “Se usam a maconha para sentir, o crack é para não sentir nada”, afirma Aloísio Andrade. “Como o idoso já passou da fase de criar família e fazer carreira profissional, aumentam o tempo livre e a sensação de vazio existencial”, diz o psiquiatra, explicando porque os dependentes buscam a droga para se desligar da tomada.
Não existe fórmula pronta para dar sentido à vida, mas Aloísio Andrade recomenda criar vínculos de amizade ou de interesse. Como se diz por aí, inventar boas modas, aprender a tocar um instrumento ou usar o computador, fazer esporte ou cultivar orquídeas, inscrever-se em um serviço voluntário ou reativar a associação do bairro ou da rua. “O problema do Brasil é que envelhecemos muito rápido, em 40 anos, enquanto a França levou 150 anos para realizar o mesmo processo. No Japão, os cidadãos já sabem que serão longevos e planejam desde cedo a renda futura, o hobby e sua terceira ou quarta profissão”, exemplifica Viviane Marçal.

Problema reconhecido
“Reconhecemos que o problema existe e que o uso de drogas na terceira idade cresceu na última década no país”, diz Cloves Benevides, subsecretário de Políticas sobre Drogas de Minas, vinculado à Secretaria de Estado de Defesa Social (Seds). Ele se mostra especialmente preocupado com o crescimento da presença de pessoas mais velhas nas cenas urbanas associadas ao uso do crack. Nas cracolândias o nível de degradação, sujeira e violência é alto. “Os idosos já são mais vulneráveis, e com o uso da droga tornam-se mais passíveis de sofrer agressões. A situação é grave”, diz.
Identificada a raiz do problema, a subsecretaria prepara ações de prevenção para enfrentar o drama do envolvimento dos idosos com o crack. Para o segundo semestre, Benevides anuncia jornadas de capacitação de profissionais que atuam nos serviços de assistência social para lidar com o novo perfil dos usuários. “Se o paciente mais velho já tem um quadro de alcoolismo, é preciso uma atenção especial para ele não saltar mais um degrau”, alerta o subsecretário, que pretende estender o programa aos policiais do Grupamento Especializado em Policiamento de Áreas de Risco (Gepar), responsáveis pela ronda nas cracolândias.

Me viciei da primeira vez
“Nunca tinha experimentado droga, mas o efeito do crack foi devastador. Me viciei da primeira vez. Tenho boa formação. Estudei em colégio interno e cursei filosofia, mas estava sentindo minha vida vazia. Conheci a pedra em 2008, por influência de colegas. Minha mulher estava viajando para Diamantina. Duas colegas do serviço me introduziram no crack. A droga desliga a pessoa da realidade. Cheguei a roubar objetos da casa da minha irmã para trocar pela pedra. Ela sabe que eu estava louco, que eu normalmente não faria isso. Tenho vergonha do dia em que meu filho foi lá na (Favela da) Ventosa me mostrar o carro zero que ele havia comprado e não dei valor. Estava fora de mim. Minha família está rezando por mim e me manda cartas. Na semana que vem faz cinco meses que me internei aqui (na comunidade terapêutica Fazenda de Caná) e já fui autorizado a fazer minha primeira visita externa. Estou inseguro.”
Antônio, de 54 anos, vendedor autônomo

Estou andando na luz
“O crack não discrimina ninguém. Até pessoas milionárias estão mexendo com isso. Elas estão saindo do pó e entrando na pedra. Eu fiquei no meio das pedras e acabei escorregando nelas. Quase caí na sarjeta. Perdi esposa, minha oficina mecânica, os dentes e a dignidade. A primeira pedra custa barato. O problema é que seu efeito dura meia hora e dali a uma hora o cara quer outra. Ele está na fissura e faz qualquer coisa pelo crack. Cheguei a trocar uma TV por cinco pedras, que valiam R$ 50. Só não virei mendigo porque tenho dois filhos. Um dia fui chamar a atenção do meu mais velho, de 17 anos, e ele disse que eu não tinha mais moral para falar como pai. Uma semana depois, parei com tudo. Sobrou só o cigarro. Faço questão de dar esse depoimento porque não quero que nenhum ser humano passe pelo que eu enfrentei. A sociedade apaga quem mexe com crack. Eu saí das trevas e estou andando na luz.”
Antônio Henrique, de 54, ex-dono de oficina mecânica e músico

Vou deixar essa vida
“Comecei a usar maconha há 19 anos porque tinha uma úlcera brava e não conseguia comer. Disseram que fumar baseado dava muita fome. Nunca mais parei com as drogas e experimentei de tudo. Conheci o crack com um amigo, que mostrou que a pedra ajuda a tirar o cheiro da maconha. Com isso, conseguia esconder da minha mãe. Sou filho único e moro com ela. Ela é pedagoga, tem livros escritos e devo a ela sair desse embalo. Minha vida virou um inferno. Eu vendia saúde. Era faixa preta de judô e campeão de motocross. Só consegui sair do fundo do poço depois de um sonho. Desde que meus filhos eram pequenos, tenho costume de chamá-los de “bro” (diminutivo de brother, irmão em inglês). Pois então, no sonho vinha descendo um ônibus de viagem e que quebrou no caminho de uma praça, onde havia um mendigo, que era eu. Meus dois filhos desceram , passaram por mim e não me reconheceram até o momento em que gritei: “bro!” Eles então me abraçaram e saí daquela vida. É o que pretendo fazer.”
Caio, de 55, dono de pousada

Entrevista
Karla Giacomin Presidente do Conselho Nacional dos Direitos do Idoso
`O Brasil não valoriza o velho`
Presidente do Conselho Nacional dos Direitos do Idoso (CNDI), a geriatra mineira Karla Giacomin alerta que o Brasil ainda não acordou para as necessidades dos velhos que, em 30 anos, serão um em cada quatro brasileiros. “Não se deve permitir que o velho busque o crack como saída, como fuga do preconceito”, alerta.

Pode-se dizer que o crack chegou à terceira idade?
Os velhos, como qualquer outro grupo etário, não estão livres do crack. No entanto, o uso dessa droga não é queixa prioritária no Conselho Nacional dos Direitos do Idoso. Ainda temos velhos que nunca ouviram falar de crack no seu dia a dia.

Qual é o risco do crack para os idosos?
O problema do crack é que ele não tem volta. A droga tem alta taxa de letalidade e causa grave processo de demência, com perda social definitiva. Portanto, o maior trabalho é preventivo. Não se deve permitir que o velho busque o crack como saída, como fuga.

Como fuga de quê?
O Brasil ainda não se preocupa com as necessidades da pessoa envelhecida, sendo que, daqui a 30 anos, um em cada quatro brasileiros será idoso. Você sabe que o que a gente reprime e recalca a gente não enfrenta.

Como assim?
O Brasil não valoriza o velho como indivíduo, o quanto ele pode colaborar e participar da sociedade. Para se ter uma ideia, o Plano Nacional de Educação não prevê cursos de graduação ou pós-graduação para o idoso. Há muito o que se pensar sobre a incorporação desses saberes na pós-carreira. Atualmente, ao se aposentar é como se a pessoa perdesse a capacidade financeira e o valor social.

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