Jornal O Estado de Minas
Sempre dedicado a repassar valores a favor da família,
história do religioso começou no Bairro Padre Eustáquio, durante a década de
70, quando promovia encontros de jovens e casais para aconselhá-los
Luciane Evans
Padre Osvaldo Gonçalves não é de
muita conversa. A cada pergunta, seu pensamento vai longe, como se buscasse
nesses 80 anos vividos a resposta certa para tantas incertezas que a vida já
lhe mostrou. Ele tem pressa. Não quer deixar de cumprir uma rotina de dedicação
sem trégua, um cotidiano sempre repetido, das 6h às 22h, durante anos a fio,
carregando pessoas boas, mas cheias de problemas difíceis de suportar. “Podia
ter feito de outra maneira e não ter colocado tanto peso nas minhas costas, mas
eu não soube fazer diferente”, conta o sacerdote no livro Eu me envolvi com os
drogados, publicado em 2009.
Sempre dedicado a repassar
valores a favor da família, a história desse homem começou no Bairro Padre
Eustáquio, na Região Noroeste de Belo Horizonte, durante a década de 70, quando
promovia encontros de jovens e casais para aconselhá-los. O lugar ganhou o nome
de Recanto de Canaã. Mas, em 1979, as queixas passaram a ser ainda mais
preocupantes: estourava na cidade a dependência química. O seu primeiro contato
com essa realidade veio quando uma mãe aflita chegou a ele e lhe apresentou seu
filho Marcos, na época com 18 anos, que trazia no corpo verdadeiras chagas,
como consequência das picadas, injeção de algafan, uma espécie de morfina nas suas
veias.
Ao se deparar com o garoto, padre
Osvaldo, que não sabia o que fazer e ciente de que o problema não se limitava a
apenas um jovem, resolveu encarar o desafio. “Não tínhamos outra solução a não
ser pensar nas comunidades terapêuticas, que começavam a nascer no Brasil”,
conta. Já existia em Campinas (SP) a Fazenda Senhor Jesus, fundada em 1978 pelo
padre Haroldo Rahm, um jesuíta norte-americano. “Ele trazia da sua terra um
modelo de trabalho destinado à recuperação de dependentes químicos. Fui para lá
conhecer”, lembra. Na época, as drogas que mutilavam as famílias em BH eram a
algafan, a maconha e a cocaína. “O pó custava um grama de ouro”, recorda o
padre.
O sacerdote passou a tratar de um
grupo pequeno de dependentes. “Fomos aceitando esses jovens, cheios de ilusão
pela primeira vitória ainda não consolidada. Eram de bom coração, de boas
famílias, mas presos ao vício, alguns inteiramente atolados na lama”, conta.
Estava dado o primeiro passo. Mas o que fazer com eles? Veio a primeira
frustração. Na tentativa de recuperá-los, o padre chegou a perder peso e noites
de sono. “Achei que podia desistir, pois não estávamos preparados para um
trabalho como esse.” Ele diz ter aprendido, ali, a não acreditar nem confiar em
uma pessoa viciada. “Mesmo em processos de recuperação, elas podem falar o
contrário do que estão pensando e prometer o que não tencionam fazer.”
Terapia
E, apesar das decepções, o padre
não desistiu. “Passei a pesquisar mais sobre o assunto, ir a congressos, ler
livros e preparar palestras. Criei estruturas mais sólidas para evitar os
fracassos”, comenta. Em 1987, foi criada, com a ajuda da Congregação dos
Sagrados Corações e de alguns fiéis, a comunidade terapêutica Fazenda Recanto
de Canaã, em Ribeirão das Neves, na Grande BH. O espaço tem hoje 68 hectares (o
equivalente a 68 campos de futebol) por onde já passaram 4 mil dependentes.
Atualmente, são 70 internos, todos homens. A recuperação é baseada em um tripé:
disciplina, trabalho e espiritualidade. A internação é de nove meses e no local
não há portões fechados.
“O primeiro recurso é tirar o
dependente do seu ambiente. Aqui, ele aprende a trabalhar com lavoura, faz
limpezas, capina, trabalha na floricultura e mexe nas hortas. Além disso, passa
a descobrir valores de espiritualidade. Todos os dias, oramos e fazemos uma
reflexão do evangelho”, destaca. O padre diz que o pedido de socorro é
voluntário. “Vem gente do Brasil inteiro nos pedir ajuda. Como são três
comunidades na fazenda, sendo uma para cada etapa passada pelo dependente, há
uma equipe de psicólogos, médicos e assistente sociais.”
Canaã é transformação
No livro Eu me envolvi com os
drogados, o padre Osvaldo Gonçalves explica que o nome Canaã evoca não somente
a presença de Jesus em um casamento, mas é o lugar onde ele fez o seu primeiro
milagre, transformando água em vinho. “Essa transformação simboliza a mudança
que se faz no coração das pessoas e na orientação das suas vidas, desde que
Cristo seja convidado a participar do seu projeto.”
Presença da família é fundamental
Durante três vezes na semana, o
vigário se encontra com os familiares dos internos em reuniões feitas no Bairro
Padre Eustáquio. “A família é fundamental para a qualidade do processo”,
defende, reconhecendo que o trabalho não é fácil e nem sempre quem sai dali
está libertado do vício. “A droga tem muita força. Ela é maldita. Derruba os
ideais, frustra as promessas e as esperanças”, diz. Ele afirma que o retorno ao
mundo lá fora, o reencontro com os antigos companheiros e a incontrolada
compulsão fazem voltar tudo como era antes. “Por isso a família é importante. E
a espiritualidade, fundamental.”
Não há, segundo ele, como dizer qual
o tipo de vício mais recorrente entre os dependentes. “É tudo misturado. Mexem
com o crack, cocaína e maconha.” Por esse motivo, por saber que um vício leva a
outras substâncias, o sacerdote não vê com bons olhos a descriminalização da
maconha, assunto que o Brasil começa a discutir. “Isso cria condições para as
pessoas experimentarem outras coisas. Se liberar a erva, será uma calamidade.
Falam em acabar com o tráfico, mas isso só vai acabar quando não houver
comprador. Dizer que a descriminalização vai reduzir a criminalidade é uma
incógnita.”
A rotina na fazenda começa às
6h30, quando todos se encontram na capela para oração. “Temos uma padaria, em
que o pão é feito pelos internos. Eles fazem trabalhos manuais, a chamada
laborterapia. Há também tempo para o esporte. Já tivemos como internos médicos,
advogados, engenheiros e universitários”, comenta. Na sede do Recanto de Canaã,
no Padre Eustáquio, há espaço para as mulheres, mas a capacidade é para 15.
Para o trabalho com os dependentes é cobrada uma contribuição de R$ 900 mensais
das famílias, mas, de acordo com o vigário, as condições dos familiares são
consideradas.
Padre Osvaldo diz que foram
muitos os que conseguiram vencer o vício com o trabalho na fazenda. Ele
aconselha aos dependentes aceitarem ajuda. “É preciso querer, começar e
perseverar. Salva-se aquele que perseverar até o fim. É palavra de Jesus.
Nenhum comentário:
Postar um comentário